Por: Vólia Bomfim
As Leis nos 13.429/2017 e 13.467/2017 acrescentaram sete artigos à antiga Lei nº 6.019/1974 e autorizaram a terceirização em atividade-fim, assim como o trabalho do sócio através da sua pessoa jurídica, sem que isso forme o vínculo de emprego com o tomador.
O § 1º do art. 4º-A da Lei nº 6.019/1974 trata da terceirização típica em que o trabalhador é empregado e é contratado, remunerado e dirigido pela empresa prestadora de serviço, que é sua empregadora. Situação distinta é a prevista no § 2º do mesmo artigo, que estabelece que não há vínculo de emprego entre o sócio da prestadora de serviços (que é a pessoa jurídica da qual é sócio) e o tomador dos serviços.
Os institutos se assemelham, mas são diferentes, pois, enquanto na terceirização o trabalhador é subordinado e dirigido pela empresa prestadora dos serviços, que é sua empregadora, na pejotização o sócio presta serviços sem subordinação e sem ter sido “contratado” pela sociedade da qual é sócio. A prestação de serviços a terceiros é gênero que engloba a terceirização, a quarteirização e a pejotização.
O § 2º do art. 4º-A da Lei nº 6.019/1974 autoriza o sócio a prestar serviços pessoais ao contratante, sem que isso configure vínculo de emprego, regulando a pejotização. Ressalte-se que, para essa modalidade de contratação, a lei não informa que a contratada dirige e contrata os serviços do trabalhador sócio.
Como visto, a contratação de serviços de terceiros abrange diferentes modalidades de subcontratação de mão-de-obra.
Uma destas modalidades é a pejotização (PJ’s, Pejotas, MEI’s, PJtização, PJtinhas etc.). Sua denominação tem origem no termo “pessoa jurídica” e se relaciona à prática de um profissional liberal ou não, prestar serviços através de um contrato de natureza comercial ou civil, por intermédio de uma empresa por ele próprio constituída ou da qual ele é um dos sócios. De forma equiparada, a tese se aplica ao trabalhador MEI também.
O STF tem adotado critérios diferentes daqueles utilizados pela Justiça do Trabalho para autorizar a pejotização e as “outras formas de trabalho fora da CLT”, como a condição de hipersuficiência, o que quer dizer liberdade de negociação, além de ganhos abastados, em padrões superiores aos do mercado. O STF não adotou o conceito de hipersuficiência contido no art. 444, parágrafo único, da CLT, tanto que há decisões em que foi afastado o vínculo de emprego declarado pela Justiça do Trabalho, em que o trabalhador era corretor ou representante comercial, sem curso superior e com salário de pouco mais que três salários-mínimos. Não estão sendo aplicados ou observados os arts. 2º, 3º e 9º da CLT pela Suprema Corte.
Aparentemente, o STF tem dado mais valia à forma e à autonomia da vontade que à realidade dos fatos, mitigando e até afastando as regras e os princípios trabalhistas. As regras da CLT passaram a ser facultativas para alguns tipos de trabalhador e estes podem escolher o modelo de contrato a ser adotado, mesmo que fora da CLT.
Em agosto de 2018, o STF julgou a ADPF nº 324 e o RE nº 958.252, e fixou a seguinte tese: “1) É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2) Na terceirização, compete à contratante verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada e responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias” (ADPF nº 324). O entendimento se aplica às terceirizações ocorridas antes mesmo da Lei nº 13.429/2017.
O relator da ADPF nº 324, Ministro Barroso, entendeu que “A terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. É o exercício abusivo da sua contratação que pode produzir tais violações”. Em outras palavras, o STF admitiu que a realidade dos fatos pode demonstrar o exercício abusivo e a existência de fraude na contratação.
Igualmente importante a tese vinculante fixada no julgamento do Tema 725, da tabela de Repercussão Geral, acerca da constitucionalidade da terceirização de mão de obra, proposta pelo Relator Ministro Luiz Fux, que, de maneira muito mais ampla firma tese de que “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (RE nº 958.252 – grifos nossos).
Dessa forma, a Súmula nº 331 do TST (que proibia a terceirização de atividade-fim nas empresas) passou a ser considerada pelo STF como inconstitucional por violar os princípios da legalidade, da livre-iniciativa, da livre concorrência e dos valores sociais do trabalho. Até então, adotada de forma pacificada pelos Tribunais Trabalhistas, a Súmula nº 331 se tornou obsoleta e caiu em desuso.
Outro relevante precedente diz respeito ao julgamento conjunto da ADC nº 48 e da ADI nº 3.961, que versou sobre o Transporte Rodoviário de Cargas – TAC, em que o STF reconheceu a constitucionalidade da Lei nº 11.442/2007,[1] que vinha sendo afastada pela Justiça do Trabalho, entendendo que a atividade de Transportador Autônomo de Cargas configura relação comercial de natureza civil, sem vínculo de trabalho celetista. Tese: “1) A Lei 11.442/2007 é constitucional, uma vez que a Constituição não veda a terceirização, de atividade-meio ou fim. 2) O prazo prescricional estabelecido no artigo 18 da Lei 11.442/2007 é válido porque não se trata de créditos resultantes de relação de trabalho, mas de relação comercial, não incidindo na hipótese o artigo 7º, XXIX, CF. 3) Uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista”.
Na mesma direção, o julgamento da ADI nº 5.625, que tratou dos Contratos de Parceria com o Profissional de Salão de Beleza: “1) É constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei 13.352 de 27 de outubro de 2016; 2) É nulo o contrato civil de parceria referido, quando utilizado para dissimular relação de emprego de fato existente, a ser reconhecida sempre que se fizerem presentes seus elementos caracterizadores” (grifos nossos). Percebam que para estes trabalhadores o STF admitiu a possibilidade de análise do caso concreto para apuração de eventual fraude trabalhista.
Os precedentes supra (Terceirização – Tema nº 725, Transportador Autônomo de Cargas – TAC – ADC nº 48, e Salão Parceiro – ADI nº 5.625) formam precedentes vinculantes inovadores a respeito da terceirização irrestrita ou ampla prestação de serviços a terceiros, entendendo também pela compatibilidade da pejotização com a Constituição Federal, o que serviu de base para uma série de Reclamações Constitucionais[2] a respeito de profissionais de outras categorias como médicos, advogados, professores, artistas, corretores de imóveis etc.
Tomando como exemplo o emblemático caso da RCL nº 47.843, o STF anulou a decisão da Justiça do Trabalho para reconhecer a licitude na contratação de médicos pelo Instituto Fernando Filgueiras, na Bahia, por meio de pessoa jurídica (pejotização), validando a adoção de formas alternativas de contratação de mão de obra, sem prevalência ou preferência do vínculo de emprego celetista, principalmente para os profissionais hipersuficientes. Conforme voto do Ministro Barroso:
Repito que, se estivéssemos diante de trabalhadores hipossuficientes, em que a contratação como pessoa jurídica fosse uma forma, por exemplo, de frustrar o recebimento de fundo de garantia por tempo de serviço ou alguma outra verba, aí acho que uma tutela protetiva do Estado poderia justificar-se. Gostaria de lembrar que não só os médicos, hoje em dia – que não são hipossuficientes –, que fazem uma escolha esclarecida por esse modelo de contratação. Professores, artistas, locutores, são frequentemente contratados assim, e não são hipossuficientes. São opções permitidas pela legislação.
Mais do que abrir uma discussão quanto à capacidade do poder de negociação do trabalhador hipersuficiente com seus empregadores (que encontra sua definição no art. 444, parágrafo único, da CLT, como aquele com ensino superior completo e remuneração mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social), percebe-se do voto do Ministro deu maior relevância à livre autonomia consciente da vontade nas contratações do que propriamente ao conceito de trabalhador hipersuficiente da CLT. Além disso, aparentemente, o STF tem considerado como hipersuficiente o trabalhador esclarecido e com rendimentos altos, sem adotar o conceito trabalhista contido no art. 444, parágrafo único, da CLT.
Da mesma forma, a RCL nº 61.115, que teve as decisões proferidas no processo com reconhecimento do vínculo de emprego anuladas pelo STF. A reclamação diz respeito à relação de trabalho (pejotização) entre médica e hospital para o qual trabalhou de 1996 a 2013, mediante salário fixo mensal, executando tarefas de modo contínuo e com inequívoca subordinação jurídica.
É de chamar atenção o caso da RCL nº 53.899,[3] que versa sobre advogada que figurava como sócia quotista em sociedade de advogados (escritório). Assim como várias outras Reclamações Constitucionais, esta não se relaciona à terceirização ou à pejotização, nem com o Tema nº 725 do STF, faltando a necessária aderência estrita, pois a relação não se dá entre pessoas jurídicas, mas sim entre sócio(s) e escritório de advocacia, em que o STF cassou decisão do Tribunal do Trabalho reconhecedora do vínculo de emprego, em razão de fraude à legislação trabalhista.
Até abril de 2025 a posição do Supremo refletia essa interpretação mais ampla e flexível em relação ao polêmico tema da terceirização da mão de obra, pejotização, entre outras modalidades de contrato de prestação de serviços. Afirmava as mudanças dos modelos de relações de trabalho e a necessidade de se buscar formas alternativas de contratação, e, até então, validava, em certos casos, as contratações fora do sistema da CLT, sempre amparado na constitucionalidade à terceirização irrestrita e todas as outras formas de trabalho além do modelo clássico celetista.
Com uma visão mais liberal e progressista do instituto, o Ministro Luís Roberto Barroso, em junho de 2023, considerou que
(…) o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho. Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. Desse modo, afirmou que são lícitos, ainda que para execução de atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação” (RCL nº 60.436).
Com base nessa visão, o STF se posicionou a respeito de uma série de matérias, flexibilizando e redefinindo conceitos, dando novos contornos a temas caros à área trabalhista. Ainda segundo o Ministro Barroso, a respeito das bases que norteiam este novo posicionamento:
“(…) venho reiterando os seguintes vetores que orientam as minhas decisões: 1) garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição para as relações de trabalho; 2) preservação do emprego e da empregabilidade; 3) formalização do trabalho, removendo os obstáculos que levam a informalidade; 4) melhoria da qualidade geral e a representatividade dos sindicatos; 5) valorização da negociação coletiva; 6) desoneração da folha de salários, justamente para incentivar a empregabilidade; 7) fim da imprevisibilidade dos custos das relações de trabalho em uma cultura em que a regra seja propor reclamações trabalhistas ao final da relação de emprego” (RCL nº 60.436).
Cabe observar das decisões do Supremo que, apesar da indicação, na decisão impugnada (da Justiça do Trabalho) da presença dos requisitos do vínculo de emprego, o fato de o trabalhador ser hipersuficiente e de se tratar de pessoa esclarecida relativiza e até exclui as regras de direito do trabalho e prioriza a autonomia da vontade, pois parte da premissa de que o trabalhador pode escolher, de forma esclarecida, o tipo de contratação (animus contrahendi), como também aponta a igualdade entre as partes para negociar diretamente. Isto é, aparentemente, o STF entendia que para esses trabalhadores o vínculo de emprego, nos moldes dos arts. 2º e 3º da CLT, é opcional, o que colide com toda a legislação trabalhista que determina a indisponibilidade de tal direito.
Concluindo, até abril de 2025, para o STF, o fato de o trabalhador ser esclarecido e ser hipersuficiente era a base para a validação das diversas modalidades alternativas de contrato de prestação de serviços. Porém, o STF não definia com clareza os critérios para considerar um trabalhador hipersuficiente, ora apontava os profissionais liberais como tais (advogados, médicos, engenheiros etc.), ora apontava representantes comerciais e corretores, que não têm formação superior. Noutro giro, também havia decisões proferidas em RCs deferidas para cassarem decisões da Justiça do Trabalho em que o trabalhador tinha alto padrão financeiro em umas e em outras com médio padrão, mas que são professores ou corretores. O art. 444, parágrafo único, da CLT não estava sendo utilizado pelo STF como parâmetro para conceituar o hipersuficiente.
Por essa razão e por conta da própria legislação e da principiologia do direito do trabalho, a tradicional essência protecionista do judiciário trabalhista (da doutrina e jurisprudência tradicional) tem divergido e demonstrado resistência à nova realidade imposta pelo STF, como visto no acórdão em que o TST (ARR nº 1258 54.2011.5.06.0006) considerou como fraudulenta a contratação de serviços, por meio de empresa do mesmo grupo, que teve como objetivo excluir dos trabalhadores os benefícios da categoria dos bancários.
Todavia, em 12/04/2025 foi afetado o ARE 1532603 , cujo relator é o ministro Gilmar Mendes, que passou a ser o Tema 1389 da Tabela de Repercussão Geral do STF, para que a Corte Maior, revisitando o tema[4], para que o STF defina acerca da Competência da Justiça do Trabalho para apreciar pedidos de vínculo de emprego destes trabalhadores; o ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e acerca da licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade.
Cabe a nós aguardar a posição do STF e a tese vinculante a ser fixada no Tema 1389 e esperar que, pelo menos, a competência da Justiça do Trabalho não seja afastada, pois violaria o próprio artigo 114 da CF.
[1] A Lei nº 11.442/2007, que revogou a Lei nº 6.813/1980, foi posteriormente alterada pela Lei nº 13.103/2015.
[2] Algumas delas: RCL nº 47.843, RCL nº 53.899, RCL nº 56.285, RCL nº 57.793, RCL nº 59.836, RCL nº 59.906, RCL nº 61.115, entre outras
[3] Outro caso: O julgamento da RCL nº 60.436 versa sobre a relação de uma advogada associada (pessoa natural) e o escritório, em que o TST reconheceu a fraude e a consequente configuração do vínculo de emprego em razão da ausência de prova de autonomia na prestação de serviços na atividade-fim do escritório de advocacia. Note-se que a advogada era sócia quotista, ou seja, não se tratava de caso de terceirização ou pejotização.
[4] Salvo para trabalhadores em plataformas digitais.